'O amor é a verdadeira razão de tudo', diz Sophie Charlotte, que brilha em 'O rebu'


Eram mais ou menos seis minutos do primeiro capítulo de “O rebu’’ quando o rosto de Sophie Charlotte encheu a tela da TV cantando “Sua estupidez’’ — e naquele instante um monte de coisa mudou. Sophie estava de cabelo curto, muito curto, o que deixava tudo ali maior. Os olhos eram maiores, as lágrimas eram maiores, o pescoço era muito maior. A boca havia crescido tanto que seus lábios viraram dois montinhos macios e acolchoados, como a melhor poltrona da casa da vó da gente, daquelas boas de se afundar e ficar de bobeira assistindo a “A Lagoa Azul’’ pela décima vez na “Sessão da Tarde’’. Tudo na atriz havia crescido. O cabelo joãozinho limpou a área e revelou um talento que, na boa, pouca gente supunha estar escondido ali. Agora é Sophie Charlotte — 25 anos, a elegância das bonequinhas de luxo da vida real e uma carreira até aqui feita quase que exclusivamente de papéis de garotas chatas e mimadas — quem toca o rebu.



Uma breve pista do que ela seria capaz foi dada em “Serra Pelada’’, filme dirigido por Heitor Dhalia. Ali Sophie interpretava uma prostituta metida entre garimpeiros batalhando a vida no cafundó de judas. Vestido curto, maquiagem forte, uma tristeza de dar dó, pouco pudor. Nas cenas mais fortes — em que trepava em banheiros imundos, por exemplo —, ela tinha o vigor de um tufão tropical, do tipo que destelha casas, escancara os segredos mais íntimos e arruína a vida das pessoas. E isso era bom. Em “O rebu’’, mesmo metida em vestidos que custam dez vezes o valor do salário mínimo e circulando em ambientes que o espectador médio nem imagina existir, ela ainda parece feita de uma matéria comum: carne, osso e cheiro. Como qualquer pessoa de verdade.


— Sei que existem roteiristas, sobretudo autores de novelas, que escrevem personagens para determinados atores. Não é o meu caso. Prefiro imaginar a emoção e a lógica da personagem como se ela fosse uma pessoa que exista no mundo, na vida — diz George Moura, autor da novela ao lado de Sérgio Goldenberg. — Os olhos rasos d’água e borrados de maquiagem emoldurando sua voz cantando “Sua estupidez’’ são um momento lindo de emoção e transcendência. Sophie tem estrela.


A Sophie Charlotte que chega para a sessão de fotos não é exatamente a estrela de TV que se imagina. Passou o dia no Projac e enfrentou quase duas horas de engarrafamento para estar ali. Ela está metida numa calça jeans cara e rasgada no joelho, um tênis de couro de cano médio, um suéter neutro, zero de maquiagem e um par de brincos menores do que de qualquer jogador da seleção brasileira na última Copa do Mundo. É quase um menino. Quinze minutos diante do espelho mudam isso tudo. Posar de Audrey Hepburn em “Bonequinha de luxo’’ é missão que ela tira de letra.

— Assisti dezenas de vezes, amo. Eu li que o Truman Capote (autor da novela que originou o filme) preferia a Marilyn Monroe no papel. Será? — pergunta Sophie, que se prepara para fazer vestibular para o curso de Filosofia. — Eu adoro estar aqui, adoro ter conquistado algumas coisas na minha vida. Cada vez eu me sinto mais uma mulher de verdade. É claro que a fama tem seu lado bom, mas não me deslumbra, eu desconfio dela, tenho o pé atrás. O amor é que é a verdadeira razão de tudo.


Nos últimos três meses o amor de Sophie responde pelo nome de Daniel Oliveira, seu par na novela. Começaram a namorar logo no início das filmagens, em Bueno Aires. Esse é o máximo de informação que deixa escapar.

Diz apenas que está tudo o.k. entre os dois. E só. Antes, tinha namorado por três anos o também ator Malvino Salvador e parece meio de saco cheio de ver sua vida pessoal exposta em tudo que é canto. Agora prefere falar do seu trabalho. Ou do passado. Ou dos dois ao mesmo tempo:

— Um dia, lá atrás, eu virei para o meu pai e disse que ia ser atriz. Ele não duvidou.


Sophie é filha de um cabeleireiro paraense, de quem herdou o sobrenome Silva, com uma bióloga alemã, de cujas avós recebeu o Sophie e o Charlotte. Nasceu na Alemanha e veio com 6 anos para o Brasil. Morou em Niterói boa parte da vida. Estudo balé por lá. Chegou ao Rio de Janeiro aos 19. Rachou apartamento com amiga. Fez Tablado. Estudou Artes Cênicas por dois anos e meio. Largou, voltou, largou de novo. Deu muita cabeçada por aí. Entrou para a Globo em “Malhação’’, dez anos atrás. Namorou um ou outro. Fez sucesso em “Ti Ti Ti’’, “Fina estampa’’ e “Sangue bom’’. Firmou seu nome entre as protagonistas. Chegou de vez em “O rebu’’.

— Eu via a Sophie circulando no Projac e dizia: “Quero essa garota pra mim.’’ Depois eu a vi cantando numa entrevista com a Marília Gabriela e aquilo virou uma obsessão — conta José Luiz Villamarim, diretor da novela e o sujeito que sugeriu que Sophie cortasse o cabelo curtinho e disse que ela cantaria uma música logo no primeiro capítulo. — Ela pensou também em “Olhos nos olhos’’, do Chico Buarque. Eram duas músicas lindas, mas ficamos com “Sua estupidez’’. Depois, a própria Sophie foi atrás e conseguiu a permissão do Roberto Carlos. Isso mostra como ela é engajada, como é determinada em conseguir o que quer. Sophie está madura. É uma atriz muito intensa.


Na hora de cortar o cabelo ela nem sofreu muito, quando viu já estava sem, aquele monte de fios amontoados no chão. O próprio pai fez o serviço. Ela diz que nunca foi apegada a cabelo. “Descobri que tenho nuca’’, anda dizendo por aí. A inspiração para o corte veio de Jean Seberg em “Acossado’’, de Jean-Luc Godard, um de seus filmes de cabeceira. O cabeleireiro Neandro Ferreira, acostumado a cuidar dos cabelos de um punhado de celebridades (Mariana Ximenes, Maria Flor, Maria Paula etc. e tal), acha que o estilo de Sophie Charlotte deveria ser mais copiado no país:

— Aqui no Brasil é tudo no aumentativo, no cabelão, no bundão, no peitão, quando alguém aparece com um corte no diminutivo, curtinho, joãozinho, todo mundo estranha. Para mim fica muito mais sensual assim, com o pescoço e a nuca de fora. E a Sophie está simplesmente deslumbrante. Linda.

Ela gosta e não gosta de tantos elogios:



— O belo é o primeiro conceito de arte do mundo, mas é um valor meio questionável. Não pode ser só isso. No meu trabalho há uma supervalorização da beleza, eu curto o que é belo também, mas não posso fazer disso o meu ofício. Eu quero ir mais fundo, quero o frio na barriga dos mergulhos verticais.

O próximo mergulho de cabeça pode vir em “Língua seca’’, filme de Homero Olivetto (roteirista de “Bruna Surfistinha’’) que contará a história de um grupo de cangaceiros easy riders que partem pelo sertão em busca de uma imagem sagrada. Cauã Raymond também está no elenco. Sophie ficou com o papel que seria de Nanda Costa: uma espécie de Maria Bonita dos novos tempos. Ela diz que estar filmando no Brasil — ensaiando muitas horas por dia, convivendo com a equipe inteira, dormindo em hotéis de beira de estrada, comendo de quentinha, filmando com o sol a pino — é, sim, um luxo. Depois, a bonequinha dá sua lista do que mais considera um luxo.

Andar descalça. Morar perto do mar. Belém do Pará. O pato no tucupi de sua avó. João Gilberto. A voz da Gal. Sophia Loren. Roupa de cama de boa qualidade. Namorado bom. Família boa. O casamento de 30 anos dos pais. Teatro Municipal. Roupa confortável. O camarim de “O rebu’’, ao lado de Patrícia Pillar e Cássia Kis Magro. A fotografia de Walter Carvalho. Ter um texto bom pra dizer. Chuva na janela de casa. Banheira em casa. Desfilar no Salgueiro. Vilas no interior da Itália. Viajar por aí. Ter pessoas gentis à sua volta. Ter tempo:

— A falta de gentileza é muito lixo. Já ter tempo é muito luxo.

E então, para finalizar sua lista, Sophie cita a poesia de Drummond, Quintela e Neruda. Depois, começa a declamar baixinho, com voz calma, os versos de “O último brinde’’, da poetisa russa Anna Akhmatova, escrita em 1934. Quando a memória falha, ela recorre à tela do iPhone para colar:

“Bebo à casa arruinada

às dores da minha vida

à solidão, lado a lado

e a ti também eu bebo

aos lábios que me mentiram,

ao frio mortal no olhar,

ao mundo rude e brutal

e a Deus que não nos salvou’’

— Putz , diz aí se escrever assim não é um luxo?

Fonte : O Globo

Um comentário:

Tecnologia do Blogger.